Lindomar Castilho, que morreu na sexta-feira aos 85 anos, foi um dos reis das rádios e programas de TV populares dos anos 1970. Bastava sintonizar a emissora AMLindomar Castilho, que morreu na sexta-feira aos 85 anos, foi um dos reis das rádios e programas de TV populares dos anos 1970. Bastava sintonizar a emissora AM

O crime e o castigo de Lindomar Castilho

2025/12/21 11:10

Lindomar Castilho, que morreu na sexta-feira aos 85 anos, foi um dos reis das rádios e programas de TV populares dos anos 1970. Bastava sintonizar a emissora AM de sua preferência e se divertir com boleros que traziam títulos como Você é Doida Demais (ressuscitada no show de TV Os Normais, de 2001), Nós Somos Dois Sem-Vergonhas e Eu Amo Sua Mãe.

O cantor, contudo, eternizou seu nome na história ao ser protagonista de um ato torpe: em 30 de março de 1981, matou a tiros sua ex-mulher, a cantora Eliane de Grammont, durante uma apresentação dela na boate Belle Époque, em São Paulo.

Segundo a jornalista Helena de Grammont, irmã da vítima, Eliane mal tinha cantado os versos “Agora era fatal/ Que nossa história terminasse assim…” quando foi alvejada no coração – os disparos acertaram ainda o violonista Carlos Randall, que acompanhava a cantora em seus shows.

Naquele período, o feminicídio, mais do que nunca, era o retrato de uma sociedade na qual os homens “lavavam a honra com sangue”. Não muito tempo antes, o playboy Doca Street havia recebido uma pena branda pelo assassinato da socialite Angela Diniz alegando “legítima defesa da honra”. O veredito inicial, de dois anos de reclusão (uma piada) foi anulado graças à pressão dos movimentos feministas. Doca foi então julgado novamente e sentenciado a quinze anos.

Os casos de Doca e Lindomar foram importantes para alertar sobre a violência contra as mulheres – uma canalhice que ainda perdura – e rendeu um lema de extrema importância: “Quem ama não mata.”

No início dos anos 2000, eu era repórter da revista VEJA quando fui surpreendido pela notícia de que Lindomar iria lançar um disco ao vivo pela Sony Music. Um passo arriscado na carreira do cantor, que nas várias vezes em que tentou subir ao palco foi vaiado com gritos e protestos.

O fotógrafo Antonio Milena e eu nos deslocamos para Goiânia, onde Lindomar vivia, a fim de tentar entender o porquê dele haver praticado aquela violência. Lindomar andava com dificuldade, não possuía mais o cavanhaque que tanto estampou as capas de seus discos e, claro, se sentia desconfortável ao falar do feminicídio. Para ele, o que fez foi uma “burrada” ou “uma cagada”. Mas, como o grupo O Rappa ensinou em sua versão de Hey Joe (de Billy Roberts, sucesso na voz de Jimi Hendrix): “Também morre quem atira”. A razão de viver de Lindomar se foi ao matar a mulher de modo tão covarde.

Um dos poucos motivos de alegria para o cantor – além das histórias saborosas que contou no almoço sobre os intérpretes de bolero daquele período, entre eles Waldick Soriano – foi a revelação de que estava se reaproximando da filha.

Liliane, filha de Lindomar e Eliane, havia entrado em contato com o pai no final dos anos 1990, e os dois se viam com uma certa regularidade. “Demorou muito tempo para eu ser chamado novamente de pai,” me disse, às lágrimas. De volta a São Paulo, entrei em contato com Helena de Grammont, tia de Liliane, a fim de falar com a jovem e confirmar a história da aproximação. Recebi um sonoro não.

Minha solução foi ligar para a lanchonete da escola de dança na qual ela estudava, na Bela Vista. Foram umas cinco ligações até finalmente falar com Liliane. Eu então me identifiquei como jornalista, perguntei se era verdade que eles estavam se aproximando e como havia sido a reação da família da mãe. “Minha tia nunca disse nada que pudesse desabonar a imagem de meu pai,” respondeu.

Helena de Grammont ligou para a minha casa no dia seguinte à publicação da reportagem. Disse que ficara pê da vida com a minha atitude, mas revelou que sua alma de repórter aplaudiu o que fiz e a maneira como  tratei sua família. Foi um dos elogios mais bonitos e sinceros que recebi em 35 anos de profissão.

Mais de duas décadas depois daquela reportagem, conheci Liliane pessoalmente por uma amiga em comum – a cantora Paula Santisteban – e consegui um depoimento mais claro sobre essa reaproximação. 

Liliane, hoje uma coreógrafa e dançarina de renome, descobriu na casa do pai um chapéu onde se lia “Lindomar e Eliane” e herdou o violão no qual se podia ler também o nome Eliane. “Para mim, é importante saber que eu nasci também de um momento feliz,” me contou.

Liliane transformou a dor em arte. Em 2023, coreografou o espetáculo Memórias em Conta Gotas, da Companhia São Paulo de Dança, onde três canções de Lindomar – Linda, Você é Doida Demais e Eu Vou Rifar Meu Coração – ganharam movimentos criados por ela. “Ele compôs Linda para mim na cadeia. Na letra, pede o meu perdão,” disse ela.

Em alguns momentos do bailado, uma dançarina cobre o rosto com uma meia, como se não quisesse mostrar sua identidade. “Percebi que eu estava falando de mim.”

O crime de Lindomar Castilho é a regra num país que registrou 1492 feminicídios em 2024 e hoje se depara com um meliante que atropela e arrasta a ex-namorada pela Marginal Tietê e outro que esfaqueia a companheira e a joga do décimo andar de um prédio na zona sul de São Paulo.

Já o ato de Liliane é atípico. “Me aproximar do meu pai foi um processo de juntar os cacos e acreditar que o ser humano pode, de alguma maneira, evoluir,” ela me disse numa entrevista para a Billboard Brasil em 2023. “Esse perdão é para mim, para que eu fique inteira e consiga seguir minha vida.”

Em sua despedida do pai, publicada ontem nas redes sociais, Liliane postou:

Meu pai partiu! E como qualquer ser humano, ele é finito, ele é só mais um ser humano que se desviou com sua vaidade e narcisismo. E ao tirar a vida da minha mãe também morreu em vida. O homem que mata também morre. Morre o pai e nasce um assassino, morre uma família inteira. O que fica é: Somos finitos, nem melhores e nem piores do que o outro, não somos donos de nada e nem de ninguém, somos seres inacabados, que precisamos olhar para dentro e buscar nosso melhor, estar perto de pessoas que nos ajudem a trazer a beleza pra fora e isso inclui aceitarmos nossa vulnerabilidade.

Assim me despeço do meu pai, com a consciência de que a minha parte foi feita com dor sim, mas com todo o amor que aprendi a sentir e expressar nesta vida.

Se eu perdoei? Essa resposta não é simples como um sim ou não, ela envolve tudo e todas as camadas das dores e delícias de ser, um ser complexo e em evolução.

Diante de tudo isso, desejo que a alma dele se cure, que sua masculinidade tóxica tenha sido transformada.

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